A mostra "Esplendor de Visconti" chega ao Brasil com uma retrospectiva bastante completa da obra de um dos maiores cineastas de todos os tempos. Luchino Visconti nasceu na Lombardia, em 1906 e até sua morte, em 1976, atuou como diretor de filmes, peças de teatro e óperas. Fico tentado, aqui, a recomendar que todos vejam os filmes que compõem a mostra sem prestar muita atenção nos dados biográficos, que os resenhistas insistem em citar quando escrevem sobre Visconti. Acredito mesmo que seus filmes são eloqüentes o suficiente para deixar clara a importância do diretor italiano na história do cinema.
Veja, por exemplo, porque "Morte em Veneza" é um dos filmes mais aclamados do século do cinema. A complexa e sutil relação da novela original do escritor alemão Thomas Mann com a música de Gustav Mahler (cuja biografia inspirou Mann) está toda ali no filme de Visconti, no enquadramento delicado e preciso, no eixo dos olhares do protagonista (o sensível ator britânico Dirk Bogarde) sobre seu objeto de amor, o garoto Tadzio (o sueco Bjorn Anderssen). Enquanto Veneza se decompõe na agonia da Belle Époque e no epicentro de uma epidemia de cólera, o sofrido compositor vivido por Bogarde descobre uma tardia paixão homoerótica: é a (re)descoberta da beleza, do amor e da morte num painel habilmente composto pelo mestre italiano. Como diz Denilson Lopes, em seu livro "O Homem que Amava Rapazes", esse filme "é uma ópera de olhares... o velho músico recebe do jovem algo de tão poderoso que conduz a uma perda de referências, a uma destruição de valores, como se sua experiência, seu mundo desmoronasse".
Por outro lado, se as cores trágicas de "Morte em Veneza" perduram vibrantes ao longo dos anos, as críticas em torno do filme raramente se desvinculam de considerações biográficas. Quando o filme foi lançado no Brasil, em 1971, a conservadora revista "Veja" o resenhou com o título de "Dupla Morte". Destacar a "decadência" de Visconti parecia, na época, ser o alvo habitual dos jornalistas mais tacanhos. O próprio Visconti chegou a declarar, irônico: "Sempre me trataram como decadente. Tenho da decadência uma opinião bastante favorável. Estou imbuído dessa decadência". É claro que, para o jornalismo mundano, essa "decadência" vinha associada ao fato de Visconti ter origem familiar aristocrática (decadente!), ser marxista (contraditório!) e, o que incomodou muitos, declarar-se corajosamente homossexual (intolerável!). A propósito de "Morte em Veneza", por exemplo, é quase sempre lembrado que Mann, Mahler e Visconti (e Bogarde) compartilhavam dessa visão homoerótica do mundo.
Esses dados, hoje, parecem menores e mesmo desnecessários quando se avalia a importância e autonomia de sua obra. Ao mesmo tempo, nos permitem perceber a familiaridade que o autor tinha exatamente com esses temas. Visconti trataria da decadência social e política em muitos filmes. No excepcional "Os Deuses Malditos" ele faz um retrato impiedoso da ascensão do nazismo. Esse filme de 1969 conta com um elenco privilegiado (novamente Bogarde, acompanhado de Ingrid Thulin, Helmut Berger e Florinda Bolkan) e tem cenas antológicas. Numa delas, o personagem de Berger choca sua família, fazendo uma drag dos típicos cabarés berlinenses da época. Numa outra, de reconstituição histórica primorosa, as tropas SS invadem a concentração das SA para perpetrar o massacre que definiria o poder militar alemão antes da Segunda Guerra; os integrantes das SA são tomados de surpresa, em plena orgia homoerótica. Visconti dá conta, assim, de fatos já celebrados, mas traz dados geralmente ocultos dos livros da história oficial.
Helmut Berger seria recrutado mais uma vez, em 1973, para representar a decadência de "Ludwig", o Rei da Baviera, cuja loucura, no filme, serve para espelhar complexidades sociais e políticas do processo histórico da unificação alemã. As ambíguas relações de Ludwig com o compositor Richard Wagner (protagonizado pelo veterano Trevor Howard) e sua prima, a imperatriz Elisabeth da Áustria, são mostradas de forma poética, em que figurinos, objetos e cenários participam como verdadeiros personagens. Vale lembrar que Elisabeth é vivida pela belíssima Romy Schneider, que já tinha representado o mesmo papel na série "Sissi", melodrama alemão dos anos 50. A versão de "Ludwig" que está na mostra é a integral, de 237 minutos -- não a mutilada pelos produtores por ocasião de seu lançamento.
A decadência das classes dominantes seria também tema de outros filmes interessantes do autor, como "O Leopardo", "Violência e Paixão" (os dois protagonizados por Burt Lancaster) e seu último trabalho, "O Inocente" (estrelado por Giancarlo Giannini). Mas Visconti mostraria outras classes sociais em seus filmes. Em "Obsessão", de 1942, ele faz um retrato impiedoso do proletariado das pequenas cidades italianas. Baseado no romance "O Destino Bate à Sua Porta", de James Cain, o filme inaugura o estilo neo-realista, com cenas rodadas em locação, elenco não-profissional e foco sobre detalhes cotidianos. Visconti levaria essa proposta ao extremo em 1948, numa das experiências mais radicais do neo-realismo: o filme "A Terra Treme". Rodado inteiramente numa pequena aldeia da Sicília, o filme conta uma história de pescadores explorados por comerciantes, é protagonizado pelos próprios habitantes do lugar e falado em dialeto. O filme é raramente exibido e a cópia apresentada traz legendas eletrônicas.
Em "Belíssima", de 1951, Visconti volta a retratar a classe operária, dirigindo uma das maiores atrizes do cinema, Anna Magnani. Segundo o próprio diretor, ela contribuiu com diálogos para o roteiro, improvisando cenas para a surpresa da equipe de filmagem. O filme trata de um assunto bastante atual: o da exploração de crianças no mundo dos espetáculos. "Rocco e seus Irmãos", de 1960, tem uma excepcional fotografia em branco-e-preto de Giuseppe Rotunno e conta as lutas de trabalhadores que enfrentam dificuldades ao migrar do sul empobrecido da Itália para uma metrópole industrial do norte. Esse filme celebrizou as atuações de Alain Delon, Cláudia Cardinale e Annie Girardot.
A vasta produção de Visconti inclui outras jóias, como "Sedução da Carne" (protagonizado pelo belíssimo Farley Granger, que alcançou fama nos filmes de Hitchcock), "O Estrangeiro" (uma adaptação do romance de Albert Camus estrelada por um corretíssimo Marcello Mastroianni), "Vagas Estrelas da Ursa" (que traz no elenco Cláudia Cardinale, Jean Sorel e ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, em 1965) e ainda médias metragens, que serão exibidos na mostra.
Enfim: uma excelente oportunidade de conhecer a obra de um artista que enfrentou preconceitos políticos, sexuais e de classe mas que deixou uma obra sólida e corajosa. Acima de tudo, uma lição de cinema.