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Zé Celso causa polêmica com "Boca de Ouro" na Rússia

Diretor fala sobre a peça de Nelson Rodrigues que apresentou aos russos: "eu dei umas sete entrevistas somente sobre o nu, como sou obrigado a fazer há 44 anos no Brasil"

Foto/AE
Fala Zé: "os espetáculos de estréia são imperfeitos, mais tensos, é normal"

Moscou - Entre os dia 2 e 12 de julho, cinco espetáculos brasileiros participaram da 6ª edição do Festival Internacional de Teatro Chekhov. Entre eles, o de recepção mais polêmica foi Boca de Ouro, montagem da peça de Nelson Rodrigues, com o grupo Oficina, dirigido por José Celso Martinez Corrêa.

De volta ao Brasil, Zé Celso respondeu por e-mail, ao Estado, perguntas sobre a polêmica recepção de seu espetáculo. E ainda fez comentários sobre a montagem russa Ilíada, do diretor russo Anatoly Vasiliev.

Encenada no grande espaço do diretor - um teatro de arquitetura não convencional -, subsidiado pelo poder público, o espetáculo de quatro horas de duração, em intervalo, encantou brasileiros pelo rigor técnico e pela beleza do coro de vozes poderosas e das coreografias, que incluíram até a capoeira brasileira e a dança dos índios do Xingu.

Você detectou diferença na recepção do público ao "Boca de Ouro", em Moscou, entre a primeira apresentação - na qual muitos espectadores deixaram o teatro - e na última, longamente aplaudida. Seria só uma questão de aquecimento? No último dia o boca a boca teria atraído um público mais afinado? Ou você atina com outro motivo?

Por mais perfeito que fosse o espetáculo, a reação seria a mesma. Os espetáculos de estréia são imperfeitos, mais tensos, é normal. Defrontado com uma coisa nova, o público raramente responde em uníssono. Lembro da estréia de O Rei da Vela, em que depois de um cartão de luto baixar e tomar toda a boca de cena, pedindo não aplausos, mas bombeiros (última fala de A Morta), somente uma pessoa, o Renatinho - que era bilheteiro do Maison de France e depois se destacou numa novela da Globo como mordomo -, aplaudiu de pé freneticamente, aos berros, solitário diante de uma platéia sorumbática, muda, perplexa que não sabia o que tinha visto. Panfleto! Mau gosto! Chanchada? Tragédia? Cafona? O próprio Flávio Império nem veio falar conosco, tinha achado horrível. No dia seguinte nos procurou chorando, tinha achado a coisa mais extraordinária que vira na vida.

Por que isso? Sempre que um espetáculo traz uma vida desconhecida, se dá um descompasso entre a platéia e os atores, pois traz valores, elementos novos que não se encaixam nos padrões, nos hábitos antigos, e o espetáculo veio mesmo para mexer em tudo isso. O mesmo aconteceu com Roda Viva, em que minha irmã me acusou de fazer a coisa mais imoral e perversa que ela tinha visto em toda sua vida e que não me imaginava capaz disso. Os intelectuais amigos todos do Chico (Buarque, autor da peça) me acusavam de querer destruir o poeta inocente de olhos de mar. Até hoje o Chico não quer que se encene Roda Viva. E foi assim com Ham-let, antes de Caetano e Gil assistirem. Basta ler as críticas. Foi uma tortura a estréia da peça e do Teatro. O mesmo com Bacantes. E ainda agora com A Luta 1. Isso sem falar nas estréias em que Nelson era sistematicamente vaiado. Ele somente foi pegar em São Paulo, nos anos 80. Houve uma histeria na platéia de Moscou, não somente com os nus. (Eu dei umas sete entrevistas somente sobre o nu, como sou obrigado a fazer há 44 anos no Brasil.) O contacto físico com o público, a extrapolação do espaço do palco, e a inundação de toda a platéia, a absolutamente incorreta peça de Nelson, que simplesmente acaba com a verdade que não existe mesmo, (foi o que mais aprendi com essa peça) com a moral, com a ‘seriedade’ da cultura. Tudo isso abalou mesmo, como disse a critica da Gazeta, o Teatro em Moscou depois de dez anos de Mnouchkines, Brooks, etc. Conheci russos e russas que viram os espetáculos todos, e eu perguntava, mas foi muito diferente o primeiro dia dos outros? Uma me respondeu: “a primeira noite foi a mais excitante pelo escândalo da liberdade de vocês diante de uma platéia e um teatro virgem (cabaço).”

Na visão do Nóbrega, o primeiro dia também foi bom, apenas o último foi melhor. Eu vi o espetáculo dele e, como o seu, achei o primeiro dia muito difícil, muito frio. Ele não, apenas achou o último muito melhor. Você também discorda que o primeiro dia do Boca de Ouro tenha tido recepção ruim. Mas e toda aquela gente abandonando o teatro antes do final? E aquela reação, na terceira versão, quando a Celeste diz: “é uma história comprida, mas eu vou contar” e o público, em uníssono, emitiu um hããã de reclamação, como se fosse uma tortura ouvir mais? O (ator) Aury até riu dessa reação. Isso não conta? Como vê isso? Qual a recepção que havia ali?

A recepção da dramaturgia do Nelson Rodrigues. “Vocês vão ouvir todas as versões, nem se for preciso que eu morra, você vai ouvir até o fim”(trecho da peça). Celeste, Guigui, em todas as personagens é sempre o Nelson avançando com sua dramaturgia genial, com seu metateatro. “Não contei? Ainda não contei a história da grã-fina?” (idem). Parece que a peça está sendo escrita no mesmo ato da apresentação. O Aury riu, eu morri de rir, era o metateatro daquela sessão, dos que foram embora aos magotes, dos que ficaram, dos que estavam gostando e dos que estavam odiando. O espetáculo passou a ser visto como o terceiro olho que é o teatro. E riu de si mesmo. Da mesma história que se repete de diferentes maneiras, e da fuga, da não captura pelos 90 minutos convencionais do Teatro atual. E era um espetáculo difícil, lutando heroicamente não somente com a compreensão do idioma, mas com muito mais com os novos sinais que muitos não tinham. Como a crítica que confessou não ter instrumentos para entender o meu teatro. Tudo isso vai no metateatro e a fala de Celeste foi a coroação da recepção grotesca, palhaça do público e dos atores rindo de si mesmo, de seu esforço de comunicação como o de Celeste com Leleco.

Notei que o público russo abandona o teatro. Vi isso em ‘todas’ as peças a que assisti lá, russas ou brasileiras. É positivo isso, no sentido de um povo que trata o teatro sem reverência? Ou negativo, algo como dar pouco valor?

Ouvi falar disso, mas não acredito que seja normal. O Abujamra foi ver espetáculos de ‘Teatrão’, como ele disse, como os da Dulcina (a atriz Dulcina de Moraes) que segundo ele não via há mais de 40 anos, e o público os reverenciava religiosamente.

Mas mesmo no espetáculo do Anatoly Vasiliev, que nada tem de teatrão, vi saírem pessoas.

Também vi. Mas não muitas. No Boca de Ouro, os atores que ficavam em vários pontos do teatro e se encontravam com o público que saía. Muitos levantavam o dedão sorrindo e diziam super. Parece que não viram ninguém sair "revoltado". Saíam em geral rindo, gozando o espetáculo. Acho que o povo russo, como o do mundo inteiro, está passando por uma transmutação de valores e não se pode mais falar da "reação do público russo". Seria generalizar demais. No Oficina muitos vão ver a primeira parte de Os Sertões e saem no intervalo. Muitas pessoas saem durante. Pelo tamanho, pela novidade, por muitas razões. Muito mais no caso do Oficina, por reverência a seus valores: “não vou perder meu tempo num teatro ou essa peça é uma provocação a tudo que acredito”. Em Moscou, no segundo dia, era aniversário de Maiakovski e nós entramos no saguão cantando “Bala Bala Bala”, um de seus poemas. No final, interrompemos os aplausos para saudarmos nosso poeta adorado, o mais adorado de meu irmão Luís. Uma russa, dona da verdade, que jamais na vida deve ter lido um poema de Maiakovski, disse: “Não é o caso de vocês invocarem Maiakovski; como vocês (que são tão vulgares, era o subtexto) têm coragem de levar esse nome a seus lábios!??!! Maiakovski deve ter provocado um terremoto no mundo com sua gargalhada. O resto do público comemorou conosco, veio a baixo e a catedrática ficou com sua cara de KGB sentada protestando. Por isso acho que houve (boa) recepção, mas dos irreverentes que se alegraram de ver o Teatro Pushkin ressuscitado.

"Boca de Ouro" seria melhor compreendido, e valorizado, pelo público de espaços teatrais como o de Anatoly Vasíliev ou o Centro Meyerhold, onde se apresentou o "Ensaio". "Hamlet"? Você pôde escolher e optou pelo palco italiano num teatro de "grandes atores". A cada vez que o protagonista dizia estar construindo seu caixão de ouro, havia uma pausa, o teatro se iluminava, e ficava evidente o paralelo entre aquele teatro dourado, de arquitetura tradicional, e o tal caixão. Pelo desejo de fazer esse paralelo, você não teria acabado por sacrificar outros ganhos?

Mas nós não queremos um público especializado. O Teatro é universal. Pode se comunicar com todos os espaços e públicos, mesmo que com desequilíbrios que fazem parte da comunicação humana para valer, e não do jogo feito. O ganho maior foi o de revelar mesmo para nós que o palco italiano é somente um detalhe num espaço imenso que é sua platéia, seus balcões, camarotes, etc. Não quisemos transformar o teatro num ‘caixão de ouro’ no sentido de um lugar morto, mas no que vimos em todos os Palácios de São Petersburgo. No Hermitage há uma sala toda de ouro, com uma pia e um chão vermelho. Um cenário deslumbrante para o Boca. As projeções ficaram belíssimas, trazendo para a tela cinematográfica tudo que acontecia no espaço todo, além de trazer imagens lindas como as de Grace Kelly e de São Jorge, patrono de Moscou. Achei o espetáculo mais lindo ainda do que já era no Oficina. Plasticamente, um ganho de 100%. E acho que o publico teve um impacto visual e uma redescoberta do palácio grandioso que é o Teatro Pushkin, mafioso e bicheiro, onde pude ver desenhos lindos da montagem de Bacantes do Taírov. Acho que se ficássemos em cartaz ganharíamos muitos rublos, pois sei que Boca de Ouro atinge a fundo o gosto russo.

O que você achou do espetáculo ("A Ilíada"), do Anatoly Vasiliev?

Fiquei deslumbrado com o que um diretor de teatro do século 21 conseguiu com seu espaço. Aliá, seria ótimo para Os Sertões. E seria uma profanação também do lugar, não tenho dúvida. Bastaria entrar A Terra. São extraordinários, o espaço e o espetáculo: o Trabalho. O oposto do nosso. A arte do sublime, da ascese, com uma capacidade de magnetização do espaço. Eu comecei com muito sono e fiquei num estado semiletargico, sonhando, até que fui inteiramente massageado, envolvido pela energia fabricada. No final, o nosso produtor, Mathias, levitava. E os brasileiros, tinha gente da Cia. dos Atores, não queriam mais sair de lá, como acontece com o público no Oficina. Eles são um convento, nós um bordel. Eles sublimam, nós dessublimamos. Somos opostos. Talvez até nos completemos. Fiquei com tesão de uma mistura tipo Apolo e Dioniso. Mas não chega a ter a intensidade de uma foda. Não há nada libidinoso. Um sorriso sequer, nenhum humor. Não notei nenhuma individualidade. E eu adoro o carisma dos atores. Jamais me encerraria neste convento, mas a grandeza do trabalho é admirável. Os russo desde os déspotas esclarecidos tem um conceito que adoro. Reunir o bárbaro (isso falta em Vasiliev) com o que melhor existe no mundo da tecnologia. Mesmo Vasiliev foi buscar no Tibet aquele cantor que ensinou a mântrica tibetana no extraordinário e wagneriano canto do grupo. Como Diaghilev que encontrou o sertanejo Nijinsky, e a partir do elementos bárbaros do paganismo russo criou os Ballets Russes, copulando com toda sofisticação da arte modernista do inicio do século 20, na Europa: Stravinski, Picasso, etc. Eles dizem sempre, como antropófagos, queremos tudo que tem de melhor no mundo para mesclarmos ao que temos.

 
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